Por um tempo de mergulhos e voos1


Maria Cristina Perez Vilas

Televisão, computador, celular, video game. Mais do que acessórios, esses produtos são os grandes companheiros de adultos e crianças na sociedade contemporânea, dominada pela tecnologia e pelo hiperconsumo. Novos modos de vida e de relação com os objetos, com o tempo e os outros são construídos: vivemos a velocidade, a ausência do silêncio, a dispersão, a superficialidade, a fugacidade. É o triunfo do rejuvenescimento, da experiência como intensificação do presente vivido.

Essa concepção de experiência contemporânea está desvinculada daquilo que o filósofo Walter Benjamin2 denominou como tradição, e que pode ser compreendida como a experiência vivida por uma geração e transmitida a outra por meio da memória3. Experiência, neste sentido, torna possível a adultos e a crianças compreenderem o sentido simbólico do ciclo da vida. E eu? E você? Temos conseguido atribuir importância às experiências humanas que nos precederam? Temos conseguido atribuir outro sentido à temporalidade?

Quando li As cores dos pássaros, novo livro de Lúcia Hiratsuka, premiada escritora e ilustradora brasileira, não pude deixar de estabelecer relação entre a memória e a leitura como experiências.

Mais uma vez, Hiratsuka volta-se para as histórias da tradição popular que já lhe renderam, entre outros, o Prêmio Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) de 2008, na categoria reconto, pelo livro Histórias tecidas em seda.

A história deste novo livro narra o que acontece com D. Coruja e outros pássaros, quando ela decide tingir as próprias penas. É uma fábula japonesa que a escritora costumava ouvir quando criança. Todavia não é só uma fábula japonesa. É uma fábula recontada. As páginas do livro são povoadas com pássaros de espécies brasileiras: sabiás, bem-te-vis, araras. É a memória da infância da autora e de seu imaginário revisitados. Em entrevista ao Blog Garimpo Miúdo, Lúcia afirma que sempre pensou “nesses contos e lendas como clássicos, pouco divulgados no Ocidente. O reconto começa pela seleção das histórias. Escolho as que me encantaram quando criança e que continuam me encantando”4.

Ler recontos de narrativas populares pode possibilitar ao leitor conectar-se aos antepassados, à herança cultural da humanidade, a qual se reconhece pertencente. É uma forma de resistência à superficialidade e à fugacidade destes tempos.

Neste livro ilustrado, não fui só “afetada” pelo que li, mas pelo modo como Lucia Hiratsuka construiu sua narrativa verbo-visual, ao utilizar a técnica do sumiê para ilustrá-la. Com pinceladas precisas, a simplicidade buscada nesta técnica oriental revela um processo nada simples: muito treino e concentração da artista.

Despreocupada com a sucessão do movimento das páginas, as pinceladas de cores desautomatizaram meu olhar. É um livro para se demorar em cada gota e traço; um livro para mergulhos. Mergulhos, porque entregue à leitura do livro, é possível pensar na poética da imagem e suas ressonâncias no texto verbal ou vice-versa. A exploração da página dupla pela narrativa visual é um dos aspectos que destaco no livro. Em muitas páginas, as imagens transbordam a dobra, e o livro aberto é a paisagem panorâmica do céu e da mata, onde habitam as aves desta fábula. O olho acompanha essa extensão visual, mas também faz o caminho inverso, quando os pássaros, pousados em galhos, troncos e folhagens, parecem mais próximos do alcance do leitor-observador, ora na página da esquerda, ora na chamada “página nobre”, a da direita.

Essa flexibilidade na diagramação guarda surpresas nas viradas das páginas. Um passarinho que transporta o azul céu das guardas para a folha de rosto; os mil olhos de um pavão que se revelam para o leitor desavisado; a aparição do corvo nas páginas finais do livro. O espaço em branco entre uma imagem e outra também é importante porque pode assumir muitas expressões, entre elas o vazio que se abre sobre os pássaros em seus voos ou o silêncio dos voos.

Em As cores dos Pássaros, a forma dada às palavras, por meio da tipografia, tem um caráter icônico. O efeito do texto se dá na exploração da forma, da cor e do tamanho dos caracteres da palavra. Um exemplo é o nome dos pássaros que ganha cores diferentes conforme suas espécies. Essa é uma brincadeira de aproximação entre a palavra e o objeto, a coisa e o nome. Brincadeira de um tempo distante, original, mítico, de quando os animais falavam.

Como afirmou Manoel de Barros, antigamente havia um “tempo em que uma palavra podia chegar à perfeição de se tornar um pássaro. As letras aceitavam pássaros”5. Esse é o tempo de As cores dos pássaros. Um tempo também de voos.

E ergo o olhar das páginas do livro6.


  1. Esse texto foi publicado originalmente no blog da Livraria do Elefante, em 16/05/2016 (http://www.livrariadoelefante.com.br/single-post/2016/05/16/Por-um-tempo-de-mergulhos-e-voo).

  2. BENJAMIN, Walter. “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

  3. PEREIRA, Rita Marisa Ribes. Tudo ao mesmo tempo agora: considerações sobre a infância no presente. In: GONDRA, Jose Gonçalves (org.). História, infância e escolarização. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002. p. 149-167.

  4. http://www.garimpomiudo.com/#!L%C3%BAcia-Hiratsuka-O-movimento-de-abrir-olhar-folhear-um-livro-nos-conecta-com-uma-pausa-dentro-do-caos-do-dia-a-dia/c218b/56f046090cf26be41bd65518

  5. BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

  6. “Nunca vos aconteceu, ao ler um livro, interromper constantemente a vossa leitura, não por desinteresse, mas, pelo contrário, por afluxo de ideias, de excitações, de associações? Numa palavra, não vos aconteceu ler levantando a cabeça?” BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 27