Televisão, computador, celular, video game. Mais do que acessórios, esses produtos são os grandes companheiros de adultos e crianças na sociedade contemporânea, dominada pela tecnologia e pelo hiperconsumo. Novos modos de vida e de relação com os objetos, com o tempo e os outros são construídos: vivemos a velocidade, a ausência do silêncio, a dispersão, a superficialidade, a fugacidade. É o triunfo do rejuvenescimento, da experiência como intensificação do presente vivido.
Essa concepção de experiência contemporânea está desvinculada daquilo que o filósofo Walter Benjamin2 denominou como tradição, e que pode ser compreendida como a experiência vivida por uma geração e transmitida a outra por meio da memória3. Experiência, neste sentido, torna possível a adultos e a crianças compreenderem o sentido simbólico do ciclo da vida. E eu? E você? Temos conseguido atribuir importância às experiências humanas que nos precederam? Temos conseguido atribuir outro sentido à temporalidade?
Quando li As cores dos pássaros, novo livro de Lúcia Hiratsuka, premiada escritora e ilustradora brasileira, não pude deixar de estabelecer relação entre a memória e a leitura como experiências.
Mais uma vez, Hiratsuka volta-se para as histórias da tradição popular que já lhe renderam, entre outros, o Prêmio Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) de 2008, na categoria reconto, pelo livro Histórias tecidas em seda.
A história deste novo livro narra o que acontece com D. Coruja e outros pássaros, quando ela decide tingir as próprias penas. É uma fábula japonesa que a escritora costumava ouvir quando criança. Todavia não é só uma fábula japonesa. É uma fábula recontada. As páginas do livro são povoadas com pássaros de espécies brasileiras: sabiás, bem-te-vis, araras. É a memória da infância da autora e de seu imaginário revisitados. Em entrevista ao Blog Garimpo Miúdo, Lúcia afirma que sempre pensou “nesses contos e lendas como clássicos, pouco divulgados no Ocidente. O reconto começa pela seleção das histórias. Escolho as que me encantaram quando criança e que continuam me encantando”4.
Ler recontos de narrativas populares pode possibilitar ao leitor conectar-se aos antepassados, à herança cultural da humanidade, a qual se reconhece pertencente. É uma forma de resistência à superficialidade e à fugacidade destes tempos.
Neste livro ilustrado, não fui só “afetada” pelo que li, mas pelo modo como Lucia Hiratsuka construiu sua narrativa verbo-visual, ao utilizar a técnica do sumiê para ilustrá-la. Com pinceladas precisas, a simplicidade buscada nesta técnica oriental revela um processo nada simples: muito treino e concentração da artista.
Despreocupada com a sucessão do movimento das páginas, as pinceladas de cores desautomatizaram meu olhar. É um livro para se demorar em cada gota e traço; um livro para mergulhos. Mergulhos, porque entregue à leitura do livro, é possível pensar na poética da imagem e suas ressonâncias no texto verbal ou vice-versa.
A exploração da página dupla pela narrativa visual é um dos aspectos que destaco no livro. Em muitas páginas, as imagens transbordam a dobra, e o livro aberto é a paisagem panorâmica do céu e da mata, onde habitam as aves desta fábula. O olho acompanha essa extensão visual, mas também faz o caminho inverso, quando os pássaros, pousados em galhos, troncos e folhagens, parecem mais próximos do alcance do leitor-observador, ora na página da esquerda, ora na chamada “página nobre”, a da direita.
Essa flexibilidade na diagramação guarda surpresas nas viradas das páginas. Um passarinho que transporta o azul céu das guardas para a folha de rosto; os mil olhos de um pavão que se revelam para o leitor desavisado; a aparição do corvo nas páginas finais do livro. O espaço em branco entre uma imagem e outra também é importante porque pode assumir muitas expressões, entre elas o vazio que se abre sobre os pássaros em seus voos ou o silêncio dos voos.
Em As cores dos Pássaros, a forma dada às palavras, por meio da tipografia, tem um caráter icônico. O efeito do texto se dá na exploração da forma, da cor e do tamanho dos caracteres da palavra. Um exemplo é o nome dos pássaros que ganha cores diferentes conforme suas espécies. Essa é uma brincadeira de aproximação entre a palavra e o objeto, a coisa e o nome. Brincadeira de um tempo distante, original, mítico, de quando os animais falavam.
Como afirmou Manoel de Barros, antigamente havia um “tempo em que uma palavra podia chegar à perfeição de se tornar um pássaro. As letras aceitavam pássaros”5. Esse é o tempo de As cores dos pássaros. Um tempo também de voos.
E ergo o olhar das páginas do livro6.