Clârencio: um retrato da infância1


Giane A. Sales da Silva Mota

Maria Cristina Perez Vilas

Introdução

A rotina de uma casa comum mostra crianças, em algum momento do dia, dedicando à televisão sua atenção, mas um olhar de relance sobre um determinado desenho abre uma possibilidade.

Este desenho animado é atual, desta geração, produzido e transmitido pela Cartoon Network Studios. Veiculado no Brasil em agosto de 2014, seu nome, um tanto peculiar, revela ao espectador outras possibilidades, afinal o título do desenho é Clarence (em inglês) ou para os brasileiros, Clarêncio, o otimista.

A sinopse disponibilizada pelo site do canal antecipa algumas informações “CLARÊNCIO, O OTIMISTA é um desenho que celebra o melhor da infância: as guerras épicas de lama, as paixões esquisitas, os combates na cama elástica, os sustos nos amigos durante a noite e as casas da árvore secretas!”

É com este cenário como plano de fundo que o presente artigo se estrutura, buscando suscitar reflexões sobre o sentido do que é ser criança na contemporaneidade. O intuito é elucidar algumas experiências da infância que explicitam a fantasia do real, e como elas são caracterizadas a partir da cultura midiática, especialmente no desenho animado Clarêncio,o otimista, episódio 41.



Episódio 41: Clarêncio – Amiguinho

O desenho infantil Clarêncio, o otimista revela os desafios cotidianos de um menino entre sete e dez anos de idade, ávido por descobrir, aprender e apreender o mundo.

Clarêncio, uma criança feliz, vive grandes aventuras na escola e na comunidade junto aos seus amigos Jeff e Sumô. Protagonista do desenho animado, Clarêncio não ostenta brinquedos, poderes mágicos, mas os episódios sempre revelam um personagem confiante, desapegado, criativo e resiliente.

No entanto, no episódio 41, a alegria de Clarêncio desaparece justamente em um dos momentos mais importantes para as crianças da escola – o momento das brincadeiras do recreio. Contudo, para compreender este episódio, é necessário apresentar o começo, e o começo não é o recreio.

O episódio 41 se inicia quando Clarêncio leva para a escola um boneco, o qual chama de Amiguinho. O boneco permanece na mochila até o momento em que Clarêncio apresenta à sua turma um vídeo (propaganda de brinquedo) sobre o dia-a-dia de uma criança com seu boneco. A motivação para o vídeo apresentado é uma atividade escrita na lousa: “Mostre e conte”. O fato é que o boneco passa todo o período de aula junto a Clarêncio, o acompanhando inclusive durante o recreio.

No entanto, devido à aparência do boneco (sujo, sem um dos olhos, quase sem cabelo, rasgado) e à insistência de Clarêncio, as crianças não querem brincar com eles. O ápice acontece quando Clarêncio, em meio à tentativa de que um amigo segure a mão do boneco, o faz cair na areia do parque. Rapidamente, Clarêncio se desculpa, mas a inspetora que os acompanha durante o recreio diz: “Desculpas não adiantam! Você vai ter que dar um tempo de cinco minutos”.

Clarêncio, humildemente, procura contra argumentar, mas sob a ameaça de que se falasse o castigo aumentaria em mais cinco minutos, ele se cala e obedece. Nessa sequência, o protagonista fica sentado, encostado em uma das paredes do pátio, reproduzindo para o boneco a seguinte fala: “Boquinha fechada”.

Durante esses cinco minutos de “castigo” um mundo imaginário se apresenta. Ao observar todas as outras crianças brincarem, os segundos, reforçados pela imagem de um relógio, tornam-se tortura; o tempo acelera e se modifica. O pequeno rosto de Clarêncio também se modifica, assumindo um semblante sofrido, potencializado pelo olhar e pelo suor que escorre em sua face.

Diante desta cena é possível identificar tamanha aflição do protagonista, porque ao lhe tirar a possibilidade de brincar, a inspetora não lhe tirou apenas um momento, ela também lhe tirou a possibilidade de criar outro mundo através do jogo e da ficção (SARMENTO, 2004), aumentando, portanto sua agonia.

Contudo, compreendendo que o imaginário infantil é uma das formas de relação da criança com o mundo (SARMENTO, 2004), o protagonista sobrevive aos longos cinco minutos acionando a fantasia do real.

Durante cinco minutos, sentado, encostado a uma das paredes do pátio, Clarêncio olha para o parque e para seus amigos que brincam alegremente. Com os olhos fixos neste panorama, ele imagina que o tempo acelera, e que seus amigos cedem lugar a outras imagens, que se apresentam em frações de segundos:

Plano 1 - No lugar do parque surgem arranha-céus e um trator abrindo mais espaço; nesse espaço robôs obrigam macacos a construírem um prédio; robôs e macacos lutam e a cidade fica em chamas; tanques de guerra derrubam os muros da cidade e outro plano imagético se apresenta.

Plano 2 – No lugar do parque e arranha-céus surge um vulcão que entra em erupção. Na sequência a lava espalhada cede lugar a uma paisagem muito verde em que dinossauros circulam; um tiranossauro Rex assume a cena; e o plano termina com fósseis;

Plano 3 – Abraham Lincoln desce de um foguete e coloca a bandeira dos Estados Unidos no terreno dos fósseis.

Em meio a estes três planos emerge a imagem aflita de Clarêncio, que mentalmente repete a si “Se eu disser alguma coisa eu ganho mais cinco minutos”. E é nesse contexto que o último plano é apresentado:

Plano 4 – Neste plano o foco é a inspetora. Ao voltar seu olhar para ela, Clarêncio observa a ação do tempo, que a transforma em caveira. A caveira se vira para ele e diz: “Clarêncio, os cinco minutos acabaram há cinco minutos, porque você não disse nada? Rápido, vá brincar antes que toque o sinal”.

Neste momento, o desenho parece marcar uma distinção entre o tempo da fantasia e o tempo da realidade, é como se a fala da inspetora retomasse a realidade. Deste modo, Clarêncio corre para o parque, mas o sinal toca e ele não pode brincar.



Faz de conta/ Imaginação/Fantasia do real

Até o momento este artigo abordou apenas as cenas iniciais do desenho, respeitando a sequência cronológica proposta pelo enredo. Essa organização, por um lado, auxilia na análise do desenho animado, mas, por outro lado, pode induzir ao erro, como se em qualquer plano, ficcional ou não, as coisas acontecessem em fragmentos.

Deste modo, torna-se necessário interromper a apresentação e refletir sobre este agrupamento de cenas e como ele se inter-relaciona aos construtos teóricos.

Para iniciar é preciso trazer à tona a terminologia que está sendo adotada para compreender as imagens apresentadas durante o “castigo” de Clarêncio: fantasia, faz-de-conta, jogo de fantasia, imaginação?

Vigotski (2009) utiliza indistintamente os termos imaginação e fantasia para designar toda a atividade criadora humana. Em Corsaro (2002) é possível observar o uso do termo “faz de conta”, relacionado às experiências da vida real, das rotinas familiares, e jogos de fantasia, baseados em narrativas de ficção. Sarmento (2004), por sua vez, adota o termo fantasia ou fantasia do real, como um dos eixos da cultura da infância para marcar que as crianças possuem um lugar próprio e uma produção cultural.

Segundo Sarmento (2004), a imaginação faz parte da fundamentação dos modos de inteligibilidade do mundo da criança: modos como vê, entende e se relaciona com o mundo. E é nesta perspectiva que o artigo se sustenta, adotando, tal qual Sarmento, o termo fantasia do real para designar as imagens apresentadas ao longo dos planos 01 a 04.

Outro aspecto relevante a se considerar é que o desenho animado utiliza o recorte para comprovar a mudança do plano real x imaginação. No caso do episódio 41, isso não foi diferente: para diferenciar a imaginação infantil da realidade proposta, a animação retoma a cena em que a inspetora se dirige a Clarêncio.

Na ficção, tal recorte é explicativo, entretanto, ao observar crianças brincando, nota-se que elas não fazem tal separação. Neste sentido, Sarmento (2004) afirma que as crianças não separam realidade de fantasia, pois sua imaginação não se prende aos limites lógicos dos adultos. Não há dicotomia. O real é fantasia e a fantasia é real. O cotidiano é fantástico e o fantástico é cotidiano.

Logo, o que acontece antes, durante e após os cinco minutos do castigo são momentos interligados, sem distinção entre o real e o imaginário.



Fantasia do real: atividade criadora.

Clarêncio nos oportuniza, não somente como telespectadores do desenho, mas como telespectadores da infância, a reflexão sobre como se estrutura a fantasia do real nas crianças. Ela é fruto do devaneio, do nonsense pueril?

Vigotski (2009) aponta caminhos que incorrem na atividade criadora do homem e que se dividem em dois tipos principais: reconstituidor/reprodutivo e combinatória/criadora.

O primeiro que parece tão conhecido pelos adultos, merece um olhar cuidadoso, pois não é efêmero e tampouco simples, mesmo que a atividade de reprodução pareça não criar nada de novo. Vigotski (2009) afirma que a atividade reprodutiva

Está ligada de modo íntimo à memória; sua essência consiste em reproduzir ou repetir meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou ressuscitar marcas de impressões precedentes (VIGOTSKI, 2009, p.13)

Deste modo, quando uma criança brinca com seus bonecos, carrinhos e demais objetos, o que se observa é a repetição do que já existe. E repetir é um modo de compreender o mundo em que se vive e se sentir seguro, pertencente. Ou como diria o autor, “[...] É fácil compreender o enorme significado da conservação da experiência anterior para a vida do homem, o quanto ela facilita sua adaptação ao mundo que o cerca, ao criar e elaborar hábitos permanentes que se repetem em condições iguais.” (VIGOTSKI, 2009, p.12).

Contudo, o que parece um simples replicar de ações por parte da criança revela uma “função vital necessária”. É a função criadora, fundamental para o desenvolvimento da criança.

Para Vigotski, os processos de criação humana podem ser observados na primeira infância, especialmente, durante as brincadeiras. Isto porque, como afirma o autor,“é na brincadeira que a criança começa a agir independentemente daquilo que vê (2007, p. 114). Um cesto de roupa vira um navio, uma caixa de papelão se tranforma na armadura de um herói ou na boca de um jacaré. Ainda segundo Vigotski (2009), durante as brincadeiras, mais do que reproduzir o que viram na realidade, as crianças “reelaboram criativamente as impressões vivenciadas” (p. 17).

Como propõe Vigotski, a fantasia se apoia na memória e dispõe das impressões realizando novas combinações. Logo, é possível compreender as reelaborações criativas de Clarêncio, que constrói novos elementos, combinando “o velho de novas maneiras”, nas cenas em que brinca com Amiguinho e imagina-se “mãe” dele ou ainda quando brinca como se fosse casado com o boneco.



Clarêncio: um retrato de infância

A cena rotineira, com crianças sentadas à frente da TV ligada em um desenho animado, indica o espaço destacado da cultura midiática no processo de interação social das crianças na contemporaneidade, e do papel notadamente preponderante do desenho animado nas culturas infantis.

Diferente das décadas anteriores, os heróis das séries animadas, a partir da década de 90, são crianças de carne e osso, que se arriscam e se sentem desafiadas por aventuras cotidianas, e buscam o reconhecimento de sua autonomia, sua competência e seu mérito próprio, mais do que poderes mágicos (SALGADO, 2005).

Dentre essas crianças podemos citar Clarêncio que rompe com estereótipos de beleza e bom comportamento. Ao longo da série ele aparece comendo “casquinha de machucado”, tirando “meleca do nariz” ou em frente à televisão, rindo junto ao namorado de sua mãe por causa de um programa qualquer. Sua família, como a de seus amigos, não é a família burguesa, nuclear: a mãe trabalha muito, e o namorado a ajuda a cuidar de Clarêncio.

Clarêncio parece ser, portanto, um retrato da infância destes tempos, porque revela um perfil de seus personagens/sujeitos (crianças/adultos), mas também das relações sociais e afetivas estabelecidas entre eles. Apesar do aparente processo de globalização da infância (SARMENTO, 2004), como se todas as crianças do mundo partilhassem dos mesmos gostos, há que se considerar, todavia, que Clarêncio retrata explicitamente seu contraponto: o processo de “imaginação do real”, um dos modos de inteligibilidade do mundo das crianças, e que particulariza, em contextos sociais e culturais variados, a experiência das infâncias.


  1. Trabalho apresentado no Eixo Temático 4 (Processos educacionais e de subjetivação) doI Congresso Internacional de Educação, realizado pelo PPGE da Universidade de Sorocaba, no CampusCidade Universitária– Uniso – Sorocaba, SP, nos dias 24, 25 e 26 de outubro de 2016.

REFERÊNCIAS

Clarêncio, o otimista. Episódio 41: Amiguinho. Escrito por: Spencer Rothbel. Storyboard: Nick Yang, Stephen P. Neary, 11:34 min. Disponível em: http://cidadelabrasil.blogspot.com.br/2015/09/Clarence-s01e41.html?m=0> . Acesso em: 30 jul. 2016.

CORSARO, W. A. A reprodução interpretativa no brincar ao "faz-de-conta" das crianças. Educação, Sociedade e Cultura: Revista da Associação de Sociologia e Antropologia da Educação, Porto, v. 17, p. 113-134, 2002.

SALGADO, Raquel Gonçalves Ser criança e herói no jogo e na vida: a infância contemporânea, o brincar e os desenhos animados. 2005. 245 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005

SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e Miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto, Portugal: Asa Editores, 2004s

VIGOTSKI, Lev. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.

VIGOTSKI, Lev. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.