Brincar com a língua 1


Maria Cristina Perez Vilas

Brincadeira não é só coisa de criança. É também de escritor e ilustrador brincante. A criança desloca a palavra do lugar, vira pelo avesso a ordem das coisas: axílabas, chutebol, quilózinho2. Escritores e ilustradores brincantes também, ao romperem com o estabelecido, com a linguagem autorizada: Tombolo do Lombo. Essa língua que encanta, língua que foi feita para brincar, “com trajes de final de semana”, carregada de afeto e que também fala de mundos desconhecidos, está sobretudo nos livros. Livros de escritores que nos fazem pensar poeticamente. Livros como Tombolo do Lombo, de André Neves, premiado escritor e ilustrador Como em uma bricolagem, neste livro, Neves inspirou-se na cantiga de roda Tangolomango, em uma das versões do folguedo Bumba-meu-Boi, e criou uma nova brincadeira. O Tangolomango é uma cantiga ou parlenda longa, com “estrutura cumulativa decrescente”, em que, ao final de cada verso, uma criança deixa o brinquedo3, até não restar nenhuma. Já a Festa do Bumba-meu-Boi é uma das mais populares do Brasil.

Dependendo da região do país, a brincadeira tem nome e jeitos diferentes, mas conta quase sempre a mesma história: o renascimento do boi depois de morto. Assim, embolando cantiga e folguedo, Neves inventa uma nova parlenda. Transforma Tangolomango em Tombolo do lombo, inserindo o boi mágico e misterioso e algumas personagens: Coronel, Cabloclo, Índia, Cazumbá, Catirina...Para participar da brincadeira, convida o leitor, que é desafiado a descobrir qual brincante deseja comer a língua do animal.

Que boi é esse, minha gente?
Animado, só quer dançar
Chamou nove músicos
Para a festa começar

Mas um deles desejou
Comer a língua do boi,
Tombolo do lombo
Vamos descobrir quem foi?

O tamborim do coronel
Desafina um tom afoito
Tombolo do lombo
Dos nove ficaram oito

Tombolo do Lombo, assim, apresenta os brincantes e utiliza uma das variações mais comuns do folguedo Bumba-Meu-Boi: o desejo de Catirina, grávida, comer a língua do animal. A fórmula de inversão é respeitada, como também o é a base ritmada. No balanço do lombo do boi, os músicos são lançados ao céu ou ao chão, até sobrar o último. Diferente das versões tradicionais de Tangolomango, nas quais os personagens “desaparecem” ao final, Tombolo, festa do boi, é diversão que não acaba.

Nascido em Recife, André Neves, sem didatismos, compartilha conosco suas raízes culturais. Em entrevista a Wendell de Oliveira Albino, o escritor afirma que as festas, a arte popular, a dança e a música de Pernambuco têm reflexos em sua obra4. Essa não é a primeira vez que temas da cultura popular ganham as páginas dos livros de André: Sebastiana e Severina, Maroca e Deolindo são outros títulos nessa estante. Mas o imaginário do escritor não está presente apenas na temática, os traços característicos do ilustrador - olhos miúdos, nariz alongado - também é alimentado por artistas nordestinos como Reinaldo Fonseca, Abelardo da Hora, Homero de Andrade e Lima, entre outros5.

Além da originalidade da narrativa, outros destaques do livro são a ilustração e o projeto gráfico, pelos quais André Neves também é responsável. Não é só a imagem que nos atrai, mas como ela é apresentada. O Boi, dono da festa, se anuncia, trazendo com ele a história. Um passáro6 se equilibra em um dos chifres. A leveza dessa imagem dá-se não só pelo pássaro pousado no símbolo representativo da força do boi, mas pela impressão de que esse animal flutua solene no canto da página esquerda. A página nobre está vazia, mas repleta de possíveis sentidos. É o dono da festa pedindo licença para se apresentar?

A seguir, na virada da página, deparamo-nos com o boi inteiro, coberto por tecidos coloridos, bordados com desenhos de cores vibrantes que remetem a mandalas e pedras preciosas, lantejoulas, rendas, fitas. Nesta página surpreende a desconstrução da imagem póetica de que o boi flutua. O boi não flutua, mas gira alto, dança vigorosamente e empina o rabo.

Além da sonoridade e da força rítmica, a expressão Tombolo do lombo é também escrita tecida no corpo do boi. Ela é enfatizada em seu caráter icônico, uma vez que a tipografia escolhida remete a letras em movimento, como se repetissem o giro e a dança do animal no espaço das páginas.

Neves chama a atenção para o livro como objeto. De forma lúdica e nada convencional, somos desafiados como os músicos no lombo do boi. A diagramação das primeiras páginas duplas se repete e a narrativa se desenrola no sentido horizontal como em um livro tradicional. Entretanto, no encadeamento das páginas seguintes haverá uma inversão do sentido da leitura do livro, e um efeito de ruptura poderá surpreender as expectativas do leitor. Como convidados dessa festa, vamos acompanhando a dança do boi, e rodopiamos e giramos, conforme a diagramação da narrativa. É um livro para se ler com os olhos e as mãos!

Diante do que foi dito, é de pensar se, embora você já tenha lido o texto até aqui, não seria mais importante abrir Tombolo do Lombo, e experimentar a linguagem proposta por André Neves. Linguagem em função brincativa, como afirmou Manoel de Barros, e não explicativa, como escrevo até a última linha deste parágrafo.


  1. Esse texto foi publicado originalmente no blog da Livraria do Elefante, em 25/06/2016 (http://www.livrariadoelefante.com.br/single-post/2016/05/25/Brincar-com-a-l%C3%ADngua-1).

  2. O que as crianças pensam sobre… – As Palavras das Crianças. Sim, toda criança pode aprender. Disponível em: (http://www.todacriancapodeaprender.org.br/o-que-pensam-as-criancas-sobre-as-palavras-das-criancas/). Acesso em: 19 maio 2016.

  3. CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

  4. Entrevista André Neves. Caros Ouvintes: Instituto de Estudos em Mídia. Disponível em: (http://www.carosouvintes.org.br/a-literatura-infantil-de-andre-neves/). Acesso em: 19 maio 2016.

  5. Entrevista: André Neves. Escrevendo o Futuro. Disponível em: (https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/
    biblioteca/nossas-publicacoes/revista/entrevistas/artigo/783/entrevista-andre-neves). Acesso em: 19 maio 2016.